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O que a demonstração dos fluxos de caixa pode indicar sobre a viabilidade do negócio de uma entidade?

O que a demonstração dos fluxos de caixa pode indicar sobre a viabilidade do negócio de uma entidade?
31/01/2024
Patrick Matos

De apresentação obrigatória para o conjunto completo de demonstrações financeiras, como estabelecido pelo CPC 26 (R1) (IAS 1), as [demonstrações dos fluxos de caixa](IFRS 10 / CPC 36 (R3) - Demonstrações Consolidadas) trazem informações relevantes sobre entradas e saídas de caixa oriundas de diferentes atividades da entidade, sejam estas associadas ao seu objeto e principal atividade ou a demais fluxos obtidos a partir de outras decisões separadas de negócios. Essas informações incluem, por exemplo, à disponibilidade e geração de caixa para pagamento de dívidas, distribuição de dividendos, reinvestimento ou expansão de capacidade operacional. Em conjunto com demais informações, permite avaliar fatores como liquidez, lucratividade, flexibilidade na alocação de recursos, entre outros. É sem dúvida relevante na análise dos leitores na medida em que essa visão se diferencia da geração de lucro contábil apresentada na demonstração do resultado (não associado ao caixa de fato gerado) ou mesmo à métricas que são moderadamente aproximadas à geração de caixa, como o EBITDA.

Notadamente uma posição de caixa robusta é desejável por parte das entidades e, por isso, a capacidade de se gerar caixa significativo é sempre um fator que denota vantagem competitiva. Altos saldos de caixa associados à baixo endividamento indica que o negócio tem maiores possibilidades de atravessar momentos de crise e dificuldades. Pode indicar também maiores possibilidades de investimento em aquisições (geralmente, momentos que precedem grandes aquisições e investimentos são refletidos por um acúmulo de caixa das entidades). Por sua vez, entidades com saldos de caixa e equivalentes de caixa reduzidos podem ter maior dificuldade em financiar suas operações no curto prazo e estar mais suscetíveis a situações econômicas adversas (crises como a que vivemos associada à pandemia da COVID-19, inflação, variação cambial, entre outras) e, consequente endividamento.

Em 2016, um levantamento feito pelo USA Today demonstrou que um terço do caixa reportado por todas as entidades de capital aberto nos Estados Unidos (excluindo, claro, os bancos) era mantido por cinco entidades (Apple, Microsoft, Alphabet (Google), Cisco Systems e Oracle), que à época estavam “sentadas” em US$504 bilhões. Desde 2016, esse caixa acumulado foi utilizado para fomentar seu crescimento mediante investimento em novas tecnologias e principalmente em aquisições. Desde 2016, estas empresas já efetuaram em conjunto, 212 aquisições de outras entidades (considerando informações públicas até junho de 2021), além da aquisição de participações em outras diversas entidades sem que se configurasse a aquisição do controle. Uma busca pelas demonstrações financeiras mais recentes dessas entidades, disponíveis no site da SEC, mostra que a posição apresentada em 2016 se mantém semelhante atualmente, fruto de geração forte de caixa que compensa a necessidade de investimentos.

Não por acaso, trata-se de exemplos de entidades com clara vantagem competitiva nos setores em que atuam. A capacidade de geração de caixa, fruto do desempenho positivo de suas operações possibilita o elevado nível de investimento que é inerente ao setor de tecnologia, onde a capacidade de busca por inovação e novas soluções determina o sucesso (e sua manutenção) dos negócios da entidade, evitando a necessidade de endividamento excessivo para a realização dos investimentos necessários e mantendo-se relevantes nos respectivos mercados.

Mas a demonstração dos fluxos de caixa não trata somente da análise do caixa gerado no ano. Naturalmente nem todo caixa gerado possui a mesma característica ou mesmo indica a tão desejada vantagem competitiva. O CPC 03 (R2) (IAS 7), que trata da apresentação da demonstração dos fluxos de caixa requer a apresentação dos fluxos de caixa do período classificados por atividades operacionais, atividades de investimento e atividades de financiamento. A classificação por atividade proporciona informações que permitem aos usuários avaliarem o impacto de tais atividades sobre a posição financeira da entidade e o montante de seu caixa e equivalentes de caixa.

O caixa oriundo das atividades operacionais é basicamente aquele derivado das principais atividades geradoras de receita da entidade, como o recebimento pela venda de mercadorias e pela prestação de serviços, e que são consumidos pelas demais atividades que são relacionadas também à operação da entidade, como pagamentos a fornecedores, empregados e impostos, entre outros. Por estar diretamente associada à atividade geradora de receita, o caixa gerado a partir das atividades operacionais é a métrica mais significativa sobre a viabilidade do negócio observável na demonstração dos fluxos de caixa, uma vez que entidades em situação financeira favorável e com negócio viável tendem a gerar fluxos de caixa positivos principalmente oriundos das atividades operacionais (ou seja, o negócio da entidade se sustenta independente do uso de capital de terceiros ou fluxos referentes a desinvestimentos, como venda de ativos). Fluxos de caixa operacionais negativos, por sua vez, geralmente indicam dificuldades da entidade de manter suas operações sem o auxílio de capital de terceiros. entidades altamente alavancadas e que dependem de rolagem de dívida para manutenção das operações apresentarão desembolsos de caixa relevantes relacionados a juros (geralmente incluídos nas atividades operacionais), além de custos operacionais relevantes que tendem a consumir o caixa gerado pela operação.

Se a geração de caixa operacional é um fator desejável, a geração desse caixa como atividade de investimento pode ser um fator de preocupação para os leitores dessas demonstrações. As atividades de investimento refletem dispêndios que têm a finalidade de gerar lucros e fluxos de caixa no futuro, como aquisição ou construção de ativos tangíveis e desenvolvimento de ativos intangíveis ou aquisição de instrumentos de patrimônio ou dívida de outras entidades, por exemplo. São poucas entidades que conseguem manter-se relevantes sem investimentos - em alguns casos massivos - em tecnologia e desenvolvimento. Mesmo as gigantes da tecnologia que mencionamos anteriormente possuem histórico de gastos significativos (em alguns casos bem aproximados do caixa gerado a partir das atividades operacionais) apresentados na atividade de investimento. Embora esse caixa consumido naturalmente deixe de estar disponível ao acionista, ainda assim pode ser visto como um indicador positivo, uma vez que demonstra um comprometimento de constante desenvolvimento e busca da administração por fluxos de caixa futuros que garantirão a capacidade de a entidade se manter relevante no mercado e com resultados positivos. Naturalmente, na medida em que estes investimentos estejam suportados por caixa gerado a partir das operações e não a partir de captações de recursos com terceiros, melhor.

Geração de caixa positiva a partir das atividades de investimento, por mais que contribua para aumentar o caixa disponível para a entidade, é geralmente um fator enganoso. Entradas de caixa a partir das atividades de investimento refletem na verdade um desinvestimento a partir da obtenção de caixa por meios diferentes da principal atividade geradora de receita (por exemplo, venda de um ativo imobilizado, de uma unidade de negócio ou outros ativos). Uma entidade que gera caixa consistentemente a partir das atividades de investimento para compensar geração de caixa deficitária a partir das atividades operacionais, muito provavelmente não possui um modelo de negócio viável e pode estar com seus dias contados.

A última atividade apresentada na demonstração dos fluxos de caixa é a de financiamento. Essas atividades demonstram de forma geral o financiamento oriundo de terceiros e é útil por também demonstrar uma expectativa de fluxos futuros que serão exigidos para liquidar obrigações financeiras. Incluem, entre outros, recebimentos pela emissão de instrumentos patrimoniais, bem como pagamentos efetuados para adquirir ou resgatar suas ações da entidade, além de recebimentos pela emissão de dívida e amortização de principal sobre essas dívidas. Embora visto como grande vilão, o endividamento de uma entidade, se bem controlado, é benéfico, pois possibilita investimentos que podem gerar fluxos de caixa futuro. A apresentação de caixa negativo gerado nessas atividades, geralmente indica que a entidade está conseguindo reduzir seu endividamento conforme planejado, liquidando as parcelas existentes na medida em que vão vencendo, sem a necessidade de rolagem de dívida. Assim como nas atividades de investimento, entidades que geram caixa consistentemente a partir das atividades de financiamento podem também não possuir um modelo de negócio viável ou estrutura de capital adequada para financiar suas operações.

Em casos de geração de caixa deficitária, as divulgações em notas explicativas devem ser mais extensas e possibilitar ao leitor das demonstrações financeiras avaliar os planos da administração para equacionamento dessa situação. Atualmente, não há requerimento regulamentar claro estabelecido pela CVM obrigando as entidades de capital aberto a divulgar em maior detalhe a natureza dos fluxos de caixa (embora haja o requerimento de divulgação de transações relevantes no formulário de referência, não é explícito que estes incluam explicações mais detalhadas sobre os fluxos de caixa), ao contrário do requerido em outras jurisdições, como nos Estados Unidos onde as entidades listadas na SEC são requeridas a detalhar os fluxos de caixa em tópico específico no MD&A apresentado em conjunto com os formulários de informações trimestrais e demonstrações financeiras anuas (10-Q e 10-K, respectivamente). Requerimentos semelhantes para o mercado nacional certamente contribuiriam para a transparência e qualidade das informações prestadas.

Uma busca rápida nas demonstrações financeiras de entidades em recuperação judicial disponíveis na CVM denota um padrão de baixa geração de caixa operacional nos períodos abarcados pela recuperação, bem como os períodos imediatamente anteriores ao pedido protocolado. As medidas de lucratividade contábil, como lucro líquido, EBIT e EBITDA tendem ainda vai se manter como principais fatores avaliados na análise de um negócio, no entanto, estes são apurados com base no regime de competência (e não caixa), em muitos casos fortemente impactado pelo uso de estimativas subjetivas e sujeitas a alto grau de julgamento profissional por parte da administração. A operação que gere lucro sem correspondente geração de caixa pode indicar inconsistências nas informações financeiras.

Não são poucos exemplos de criatividade contábil aplicada na demonstração dos fluxos de caixa e fraudes de conhecimento público envolvendo a apresentação indevida entre as atividades. A qualidade e confiabilidade dessas informações é crítica para que o leitor tenha de fato informações fidedignas para basear sua análise.

Fonte: LinkedIn Patrick Matos

 
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