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Custos ambientais e passivos por obrigações construtivas: A essência econômica está apresentada nos balanços?

Custos ambientais e passivos por obrigações construtivas: A essência econômica está apresentada nos balanços?
31/01/2024
Patrick Matos

Certos danos causados pela atividade econômica possuem nexo causal óbvio e observável. A operação em um aterro sanitário afeta diretamente aquela localidade que necessita de investimentos posteriores para ser regenerada. De maneira semelhante, a atividade mineradora também afeta de maneira explícita uma localidade, a qual demandará esforços de recuperação em grande parte abarcados por legislação específica em diversas jurisdições.

Em outros casos, no entanto, os efeitos causados à sociedade a partir de atividades inerentemente responsáveis por algum impacto no meio ambiente são menos observáveis ou mesmo quantificáveis sob a perspectiva de se imputar responsabilidade. Se por um lado em sua atividade mineradora uma entidade possui perspectivas claras sobre o que se espera, inclusive sob aspectos legais, de sua operação no que diz respeito à exaustão do local e os esforços financeiros estimados para sua recuperação (tratados como uma obrigação presente e reconhecidos como passivos no contexto das obrigações de desmantelamento e recuperação, tratadas no IAS 37 ou CPC 25, Provisões, Passivos Contingentes e Ativos Contingentes), por outro lado, o custo do dano causado à sociedade por emissões de gases poluentes na atmosfera oriundos de uma entidade em sua atividade fabril é difícil de se mensurar.

Se há responsabilidade a ser imputada a um agente poluidor, é uma discussão farta e com base histórica. Buscar associar tais feitos à uma conjuntura econômica, como muito tem se discutido atualmente não é algo novo. No passado, estes custos foram considerados meras externalidades, na medida em que não são tratados como aspectos a serem refletidos em preços de mercado ou mesmo afetar terceiros de maneira direta. A premissa seguida é que uma entidade não arcava (e ainda não arca, em geral) com obrigações legais que resultem em custos financeiros associados à sua operação, mesmo quando a poluição por ela gerada transcende o que seria eventualmente “socialmente aceito” (supondo ser possível constatar ou medir tal premissa). A correlação destes dados com os custos reais imputados à sociedade é clara: de acordo com a Organização Mundial da Saúde, a poluição no ambiente é responsável por 16% das mortes por câncer de pulmão, 25% das mortes por doença pulmonar obstrutiva crônica e 26% das mortes por infecções respiratórias.

Economistas proeminentes nos anos 1950 já se debruçavam sobre essas possibilidades, defendendo imputar responsabilidades a entes econômicos responsáveis por externalidades negativas, como é o caso do efeito da poluição. À época, destacou-se como Arthur Pigou, economista britânico, desafiou doutrinas econômicas vigentes supondo a substituição da ação industrial privada pelo estado. Ele desenvolveu o conceito que ficou conhecido como a “taxa de Pigou” ou “imposto pigouviano”, uma medida do estado para influenciar o comportamento de agentes económicos no mercado, com o objetivo de corrigir externalidades negativas. Para Arthur Pigou, a solução seria tributar o poluidor, de forma que garantir que custos associados à poluição fossem computados nas decisões econômicas do poluidor, de forma que na avaliação dos seus planos de negócios, o poluidor avaliasse até que ponto seus compradores estariam dispostos a arcar com os custos destes danos na decisão de consumir seus produtor e serviços.

O problema é que na ausência de uma imputação direta de responsabilidade, como defendido por Pigou, as externalidades acabam mantendo-se à margem dos aspectos relativos às decisões financeiras pela dificuldade na comprovação direta de seus efeitos. Ronald Coase, também economista britânico, em sua célebre obra “The Problem of Social Cost” argumentava que para lidar com externalidades, principalmente as negativas como a poluição gerada por determinado ente, deve-se atentar aos direitos de propriedade, de modo que a poluição possua dono e seus custos estejam a estes sujeitos, inclusive para eventual negociação. Em seu estudo Coase exemplifica como em caso judicial resolvido em corte, vizinhos que alegavam responsabilidade ao outro em relação à fumaça oriunda de uma chaminé foram reciprocamente determinados culpados (ambos indivíduos culpáveis pela construção do muro onde a chaminé se colocava e um indivíduo por acender o fogo). De acordo com Coase, o resultado do julgamento denota como o construtor do muro não é legalmente responsável pelos efeitos sofridos pelo outro indivíduo sozinho, o que a ele indicaria a forma na qual ao lidar com externalidades, deve se atentar aos direitos de propriedade (como dito acima, a poluição tem “seu dono” e “seus custos”).

Essa visão teve seus opositores, em especial no ambiente econômico britânico. James Meade, apreciador da visão de Pigou e famoso por seus trabalhos relacionados a economia internacional, publicou à época uma fábula a partir de externalidades positivas envolvendo apicultores e fazendeiros. De acordo com Meade, abelhas “pastam” nas flores de diversas plantações e, logo, um fazendeiro que trabalha em sua colheita que produz néctar beneficia os apicultores em sua área. O fazendeiro, por sua vez, não recebe qualquer benefício por esse serviço eventual, o que o leva a ter mínimos incentivos para manter sua produção em épocas de baixa nos preços do resultado da colheita. Por sua vez, como as abelhas não podem ser convencidas a respeitar direitos de propriedade ou contratos, não haveria forma prática na qual a metodologia de Coase poderia ser aplicada. Como resultado prático, tal externalidade deveria ser refletida em forma de subsídio aos fazendeiros ou na simples aceitação da ineficiência da produção conjunta da colheita e da criação de abelhas.

Mesmo tendo sido cientificamente questionado (na medida em que décadas depois estudos demonstraram a existência de relações comerciais entre apicultores e fazendeiros refletindo os benefícios auferidos pelos fazendeiros junto aos apicultores), o conceito da existência econômica das externalidades, mesmo quando não observáveis de maneira direta ficou marcado como parte de fatores previsíveis em análises econômicas. A ideia dos impostos pigouvianos, embora não tenha prosperado de maneira direta, de fato começou a tomar forma na medida em que cada vez mais jurisdições estabelecem mecanismos que envolvam possibilidades (e, possivelmente em breve, obrigações) de compensações e reduções de emissões de gases poluentes e, de maneira, reflexa, investidores e consumidores em geral consideram tais práticas nas suas decisões de alocação de recursos ou mesmo de consumo.

A publicidade e disponibilidade das informações disponíveis à população, onde se demanda cada vez mais o consumo consciente, e a forma na qual os detentores de capital tem pleiteado informações sobre aspectos envolvendo clima às entidades para sua decisão de alocação de capital, tem levado cada vez mais a posicionamentos formais de entidades em relação a compromissos assumidos com aspectos climáticos (em especial sobre a emissão de gases poluentes). No entanto, embora assumidas estas externalidades nestes compromissos como parte inerente à sua operação, ainda é baixo o volume de entidades que de fato associam tais custos às suas decisões de negócio e formalmente assumem um passivo e um custo correspondente para tal.

Em muitos casos, tais posicionamentos tomam como base a intenção de uma entidade de gerar benefícios “intangíveis” como a preferência dos consumidores, identificação com a marca e suas ações. Por outro lado, de maneira igual podem representar a assunção de obrigações que ensejariam o reconhecimento de passivos contábeis. Passivos por obrigações construtivas para compensação de emissão de carbono, por exemplo, já são contabilizados em diversas entidades que adotaram esse compromisso. Novos produtos no mercado de crédito com referências diretas a ESG, como os bonds vinculados à sustentabilidade (os “sustainability-linked bonds”), já são também uma realidade. Embora tecnicamente não difiram de outros passivos de financiamento, os emissores se beneficiam de taxas de juros mais competitivas (onde os credores basicamente reduzem o spread da operação sob o pressuposto de participar da ação e apoiar a causa) em contrapartida ao cumprimento de indicadores chave de desempenho relacionados a ESG. No entanto, diferentes compromissos têm se tornado cada vez mais frequentes, desafiando os conceitos atuais de passivo e tornando o julgamento dos preparadores cada vez mais significativo. Afinal, quando uma promessa de atuação em sustentabilidade é uma mera publicidade vazia (o famoso “greenwashing”), um compromisso que mesmo de boa-fé não reflita em sua natureza um passivo ou um passivo contábil que deva ser de fato considerado como uma obrigação presente?

Um conceito pátrio das normas IFRS nesse ponto reside (entre outros) no fato de que não há um passivo quando não há uma obrigação. A simples inexistência de uma obrigação legal, não estabelece que não possa haver uma obrigação construtiva, amplamente associada a interpretação na medida em que são reflexo das próprias ações, posicionamento e das visões que a entidade que reporta proporciona a terceiros. O IAS 37 define que uma obrigação construtiva (ou não formalizada) surge a partir do padrão estabelecido de práticas passadas, de políticas publicadas ou de declaração atual (que segundo a norma seja suficientemente específica) na qual a entidade tenha indicado a outras partes que aceitará certas responsabilidades. Ao fazê-lo, ainda segundo a norma, a entidade cria uma expectativa válida nessas outras partes de que cumprirá com essas responsabilidades.

Em relação à existência de uma obrigação construtiva, não me estenderei em maiores detalhes aqui, já que escrevi anteriormente (e aqui mesmo disponível) um mesmo artigo a esse respeito. Mas vale a pena considerar de maneira mais ampla a forma na qual a essência econômica na qual a atuação de uma entidade em relação a tais temas se apresenta em vista da expectativa de retorno junto à sociedade e consumidores. Comentários e ações públicas voltadas a compromissos com o clima embora louváveis, são comumente dotados também de expectativas de retorno comercial e publicitário, principalmente em vista de um público consumidor exigente em tais aspectos, além de melhorias relevantes (ou externalidades positivas?) em discussões com investidores e credores, mesmo que potenciais.

A partir destas observações e da aparente disparidade no tratamento contábil, cria-se em certos casos uma desconexão entre o nível de comprometimento de uma entidade em relação a ações voltadas ao tema ESG e os eventuais reflexos contábeis. O que parece ser passível de observação no mercado atual é que externalidades negativas (em especial associadas ao clima) já são de uma forma ou outra incorporadas nos desenvolvimentos econômicos de uma entidade que reporta. Não é necessário que se estabeleça um imposto pigouviano, mas sim uma reflexão da forma na qual o cenário econômico atual, consciente dos custos ambientais, afeta os retornos de uma entidade e a forma na qual, como previa Pigou, uma entidade já precifica seus danos ambientais na perspectiva da aceitação de seu consumidor em arcar com esses custos (ou você não recebeu ainda o convite a arcar com seus custos ambientais na sua última viagem de avião?).

Vejamos as cenas dos próximos capítulos. O avanço das relações econômicas é contínuo e inovador, a contabilidade não. No entanto a forma na qual a contabilidade se adapta aos eventos econômicos e aos aspectos avaliados na tomada de decisão dos usuários é um aspecto chave para o reporte de qualidade. Há muita margem para melhorias e novas adaptações nas normas que tocam tais passivos e, quem sabe, o projeto recentemente iniciado pelo IASB para discutir divulgações relativas ao clima pode ser um belo pontapé de partida.

Fonte: LinkedIn Patrick Matos

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