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Risco sacado e a loucura coletiva

Risco sacado e a loucura coletiva
01/09/2023
Patrick Matos
Giovanna Ferraz
Expert

Historicamente, é possível se observar fatores comuns para a criação desmedida de bolhas econômicas: além do óbvio efeito catastrófico na economia quando da sua “explosão”, em grande parte dos casos são oriundas de comportamento irracional (em alguns, fruto de delírio coletivo), levando a um aumento de preços além de qualquer valor intrínseco que os respectivos ativos possam vir a ter em qualquer hipótese.

Ao discutir os efeitos de tal delírio coletivo infundado, o jornalista Escocês Charles Mackay relembrou a “Tulipomania” de 1630, quando o apreço das classes altas holandesas e alemãs pelas tulipas de Constantinopla trouxe uma obsessão por parte da classe média que levou as tulipas a serem inclusive negociadas na bolsa de Amsterdã em 1636. À época, desde nobres a especuladores de classes mais baixas corriam aos mercados especulativos, financiando compras, operando a descoberto até o momento em que as tulipas passaram a sumir dos jardins das classes mais altas, levando consigo o encanto generalizado na população e reduzindo drasticamente os preços a algo mais próximo do valor intrínseco que se podia esperar do produto.

O efeito sobre os preços de eventos como esse é um exemplo do que resulta a atenção e interesse desmedidos, seguidos de juízo de valor sobre aquilo que não traz base suficiente para tal conclusão. Dificilmente leva a resultados positivos para qualquer parte envolvida, seja a economia como um todo ou mesmo a compreensão de um fenômeno econômico por parte da sociedade como um todo. O sequenciamento de eventos é bastante simples: (i) situações extraordinárias levam a um julgamento de determinado evento econômico; (ii) a notícia do caso incomum chega ao público em geral (especialmente àqueles leigos); (iii) o evento é exaustivamente discutido na mídia e em encontros informais; (iv) munidos de informações limitadas, incompletas (e, em muitos casos superficiais e pouco embasadas), a população e sociedade reage; e, por fim, como resultado (v) as multidões geram loucura coletiva. A loucura coletiva leva ao pânico. E o pânico é contagioso.

Não estou aqui buscando menosprezar o dano e a relevância do tema de grande conhecimento público envolvendo risco sacado nos últimos meses. Pelo contrário, os efeitos na economia como um todo, no setor do varejo e, principalmente, o dano aos acionistas precisa ser parte de discussões aprofundadas. No entanto, o que se observa após o fato é uma miríade de conclusões acerca da qualidade (ou falta dela) da normatização contábil, do auditor envolvido, da profissão contábil como um todo ou mesmo da legislação nacional.

Nota-se, por exemplo, o projeto de lei (PL 1.440/2023), prevendo medidas de proteção ao sistema financeiro contra fraudes contábeis e propondo punição às empresas de auditoria e monitoramento por parte da CVM acaba de ser apresentado como uma resposta explícita ao fato em questão com a varejista brasileira. Em que pese o benefício potencial de uma legislação como essa, a proposta apresentada é demasiadamente rasa e escancara a falta de conhecimento da responsabilidade do auditor e da capacidade normativa (e, principalmente orçamentária) da CVM. Além disso, denota a necessidade – oriunda da loucura coletiva – de se prover uma resposta a qualquer custo, sem uma discussão aprofundada com aqueles que de fato são conhecedores da responsabilidade do auditor, controles internos e normatização contábil para um tema sobre o qual não há até o momento uma resposta clara e definitiva sobre sua causa raiz.

Ao contrário do que é versado pela sabedoria convencional, o auditor não é o guardião das fraudes contábeis, assim como não é essa sua principal atribuição. Uma auditoria contábil realizada de maneira aderente às normas internacionais de auditoria não traz a garantia de que eventuais fraudes sejam justificadas (as fraudes podem, por exemplo, estar substanciadas em documentos forjados ou resultantes de conluio entre partes as quais o auditor não teria a capacidade de identificar). Em que pese a real possibilidade de falhas e negligências por parte do auditor, não há ainda qualquer evidência definitiva ou prova de que tal fato tenha ocorrido, a despeito dos julgamentos da mídia leiga sobre a qualidade do trabalho do auditor. Talvez se chegue a essa conclusão ao final da apuração, mas tal afirmação textual nesse momento é fruto de profundo desconhecimento e imediatismo.

De maneira semelhante, não é apropriado tratar do fato ocorrido como resultante de fraca normatização contábil a respeito. Tais transações já são discutidas junto ao IASB e a CVM (inclusive com documentos detalhados disponíveis) há pelo menos 10 anos. A categorização de aspectos de financiamento em operações estruturadas como dívida (e não como passivos operacionais) possui base em documentos da CVM de antes da adoção ao IFRS no Brasil. Considerar a aplicação inapropriada de conceitos contábeis resultado de ausência normativa ou de uma falha generalizada na profissão contábil é como culpar a medicina pela falha de um médico em um procedimento simples.

Por fim, incomoda a demonização criada junto à operação, tão simples quanto qualquer outra operação estruturada que se tem notícia há mais de meio século. Em um ambiente econômico comumente afetado por crises de crédito como que vivenciamos, é natural que estruturas como essa surjam onde as entidades menos afetadas pela redução no crédito atuem como financiadoras, enquanto entidades afetadas em maior grau (em muitos casos os fornecedores) atuem como os tomadores. Essas estruturas são de grande valia para as entidades e podem inclusive se converter em vantagem competitiva dentro do modelo de negócio e gestão de fluxos de caixa. O ponto é que, como determina a Estrutura Conceitual das IFRS, “coisas similares devem parecer similares e coisas diferentes devem parecer diferentes”. De maneira semelhante, também versa que “a comparabilidade de informações financeiras não é aumentada fazendo-se que coisas diferentes pareçam similares, tanto quanto se fazendo que coisas similares pareçam diferentes”. Ou seja, em que grau um passivo financeiro no escopo do IFRS 9 (CPC 48, norma que trata de instrumentos financeiros), quer seja ele um contas a pagar comercial ou um passivo de financiamento, é alterado pela existência de um programa de risco sacado a ponto de ensejar uma reclassificação em separado?

Ao aplicar tal julgamento, avalia-se até que ponto os termos e condições acordados no programa são “substancialmente diferentes”. Ou seja, ao considerar o adjetivo “substancialmente” antes de tratar das diferenças (como considerado pelo IASB e IFRIC) torna-se explícita a visão de que o simples fato de haver mudança em termos e condições de um passivo não levam à sua reclassificação para outra linha, automaticamente (ou seja, somente quando essa mudança for “substancial”).

Se é esse o caso, será que aqueles que advogam pela simples e binária definição dessa estrutura como dívida possuem de fato a melhor interpretação da normatização contábil? Será que falta instrução e normatização ou o que se observa é simplesmente o desprezo às discussões e informação disponível no âmbito contábil que deveriam nortear as discussões contábeis? Falha da profissão ou falha de um profissional?

A reação desmedida e busca imediata por culpados é perigosa. A busca de soluções normativas e regulamentares também o é. Incomodados com a disparidade entre os salários da alta administração e da média dos trabalhadores em uma organização, reguladores norte-americanos criaram o requerimento de divulgação dos salários dos executivos nos arquivamentos anuais das entidades de capital aberto na SEC. Em 1976 esse diferencial era de 26 vezes. Em 1993, 131 vezes. Após implementadas as divulgações, esse diferencial subiu para 369 vezes, alguns anos atrás. Realizar julgamentos sem compreender a raiz dos problemas é receita para o fracasso e em alguns casos para o desastre.

Que a mídia, sociedade e legislação brasileira saiba aguardar o devido esclarecimento dos fatos e responsabilidades para apontar culpados e ponderar as melhorias a serem feitas. Caso contrário, o achismo e os “pitacos” travestidos de opinião vão cada vez mais servir de combustível para a loucura coletiva e nos levar a conclusões vazias.

Fonte: LinkedIn Patrick Matos

 
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